segunda-feira, 27 de março de 2006

o hipócrita


-Saí daí, ô gordinho! – falou o Zé, brincando, no meio do trânsito ao passar perto de um sujeito meio avantajado que tentava atravessar a rua fora da faixa.
Deu uma buzinada e passamos por ele. Estávamos com os três filhos dentro do carro, no banco de trás.
- Zé.
- Oi.
- Isso aí que você falou não foi legal.
- Que foi que eu falei?
- Você disse “sai daí, ô gordinho” para aquele moço gordinho.
- Sim, e daí? Ele estava atravessando fora da faixa, quase se atirando sobre os carros. Perigoso. “Sai daí”, eu disse.
- Não é o “sai daí” o problema. O problema é o “ô gordinho”. Você chamou o cara de “ô gordinho”, assim, sem mais nem menos. Coitado.
- Mas, mãe... - interveio o Chico, de lá do banco de trás – O cara era um putz bujão. Uma rolha de poço!
- Eu sei, filho, eu vi. Mas o problema foi o modo que teu pai falou “ô gordinho”. Ele estava tirando sarro do rapaz, foi um jeito depreciativo. Como se fosse culpa dele ser gordinho. Como se ele pudesse ser julgado por isso.
A Luciana me interrompeu.
- Mãe, desculpa, mas se ele é gordo a culpa é dele.
- Claro que não é, filha. Tá, muita gente é gorda porque abusa da comida, mas muitas tem problemas de saúde, problemas psicológicos... a gente não sabe, por isso que não pode falar desse jeito que teu pai falou aí – expliquei – Olha, eu, vocês, qualquer um no mundo pode um dia ter um problema e de repente ficar gordão.
- Ô droga, então a gente não pode falar nunca nada de um gordinho? – desabafou o João.
Eu olhei para trás.
- Olha. A gente xinga e implica com pessoas que tem características ruins, não com quem tem problemas ou vícios. Por exemplo, é feio xingar um fumante de fumante, um drogado de drogado. As pessoas não têm vícios porque querem.
Acho que eu estava a maior chata ali, dando lição de moral, mas na hora achei necessário: adolescente sempre abusa da maldade. Aquela coisa sem fim de “tirar sarro” dos outros.
Continuei, empolgada.
- ... O que é é bem diferente de uma pessoa com má índole. Existem pessoas más, ladras, grossas, hipócritas, mal educadas, cínicas, que fazem o mal de verdade. Isso não é vício, é falta de moral mesmo. Essas podem ser xingadas.
- Como que você falou mesmo, mãe? – perguntou um dos meninos – Hipócritas, mal educadas e cínicas?
- É. Gente que faz o mal de propósito.
Ficou um silêncio no carro.
- Essas então a gente pode xingar? – perguntou o João.
- Pode.
Óbvio que virou motivo de piada. Desde então que, em qualquer situação, quando passamos por um gordinho, os meninos e o Zé me cutucam, rindo.
- Mãe, olha. Um hipócrita.

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