terça-feira, 22 de novembro de 2005

o reloginho



Como eu sempre encontrava aquela mãe na porta da escola, nas festas infantis e na porta da casa dela por causa dos filhos, ficamos conhecidas. Depois de uns meses, ela sugeriu.
- Que acha de um dia sairmos à noite, sem filhos? Uma vez por semana eu e o Haroldo sempre vamos jantar fora. Você e seu marido não querem ir com a gente?
- Ah, legal... vamos sim – respondi, pensando na reação do Zé quando eu contasse que a gente ia sair com um casal desconhecido.
Não que isso seja um problema. Eu ainda tenho muito espaço na minha alma para conhecer muita gente, e acredito que vou conhecer. Mas tenho, assim como sei que o Zé também tem (acho que por isso que a gente casou) uma certa preguiça de fazer programas com gente que a gente não conhece. É que tivemos muitas experiências de sair com gente chata, careta, sem graça, sempre com as mesmas conversas básicas, maridos falando de futebol e mulheres reclamando de filhos. O resultado sempre é a sensação de pouca intimidade e muito sono às 11 e meia.
- Vai ver que dessa vez será diferente , Zé.
- Você conhece o marido? – ele perguntou.
- Não. Só sei que chama Haroldo e trabalha com turismo.
Mas fomos surpreendidos. O casal era muito bacana, ela era alegre, ele engraçado, os dois inteligentes. Estávamos adorando o jantar, imagina, e eu achando os dois uns chatos, pensei ao ver o Zé conversando animadamente. Mas de repente aconteceu uma coisa. E essa coisa, bom essa coisa fez desmoronar toda a imagem ligeiramente simpática que tínhamos do casal.
Sem mais nem menos, ele, o Haroldo, disse que não podia dormir tarde porque tinha um treinamento de manhã com seu personal. E começou a contar sobre a sua rotina.
Disse que depois do treinamento voltava para casa, tomava um café da manhã com frutas, iogurte, café e torradas, tomava um banho e ia ao banheiro, pois o intestino dele funcionava como um reloginho.
- Como é? – eu me assustei.
- Como um reloginho – ele disse animado – Nunca tive problemas de prisão de ventre.
Gente, eu mal conhecia aquele homem. Gente, estávamos comendo a sobremesa, pô.
Ele foi além. O fato do intestino dele funcionar feito um reloginho, que, para mim era uma nojeira, para ele era um grande trunfo. Ele se gabava daquilo, era como se ele viesse de uma família com ancestrais prisões de ventre e tivesse sofrido muito com isso durante toda a sua infância.
- Olha, eu funciono todos os dias no mesmo horário há anos. Graças a Deus nunca falhei. Nem nas viagens, que geralmente deixam a Rê com altas prisões de ventre, eu falho. É impressionante – e ele olhou para a Regininha, que assentiu com a cabeça, orgulhosa.
Olhei para o Zé constrangida. Deveríamos... cumprimentar? O que se fala depois de um comentário desses? Que maravilha?
Ave Maria. A nossa noite praticamente acabou. Que casal era aquele que expunha, na hora da sobremesa, as façanhas intestinais? Além de saber que todos os dias as 8 e meia da manhã o Haroldo ia ao banheiro, nós tínhamos que saber que a Rê tinha prisões de ventre horríveis nas viagens?
Ai que nojo.
Olha, desculpa. Se tem uma coisa que eu acho que não deve ser comentada nunca é essa. O funcionamento do fígado, do estômago e dos intestinos de cada um é coisa que interessa só a própria pessoa. Tenho muita vergonha, aflição e sem graceza de saber qualquer coisa sobre a funções intestinais de desconhecidos. É um assunto que me deixa embaraçada, perturbada. Acho que prefiro ver o casal completamente nu na minha frente do que saber esses detalhes escatológicos. E noto que tem muita gente que nem liga de falar, como se fosse um assunto normalíssimo. Deve ser uma coisa de família, de formação.
Aquele homem estragou a minha noite e a minha sobremesa, pois eu praticamente “vi” a sobremesa que ele comia sair na hora do reloginho. Até hoje as oito e meia eu lembro do cara. Olha gente, perdões até pelo post tão asqueroso, mas achei que era necessário comentar.
E toda a vez que temos que nos referir a eles, eu ou o Zé, nós falamos.
- Aquele lá, lú. O do cocô reloginho.
- Ah, sei. O das oito e emeia!

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