sexta-feira, 1 de julho de 2005

a cocada e o vôo


Foi novamente na hora de embarcar para São Paulo que a coisa aconteceu. Com o cartão de embarque na mão, com minha mochila e duas sacolas cheias de cocada, percebi uma alteração nos monitores de partidas e chegadas do saguão do aeroporto de Ilhéus ontem à noite:
“Vôo cancelado”.
Olhei para os engenheiros que estavam comigo. Eles conversavam animadamente.
- Gente. Olha... – apontei a palavra amarela que piscava – Cancelado!
- Iii.. – falou um deles - Lá vai a lúcia armar um novo barraco no balcão da TAM – falou um deles, rindo.
Não precisei. Um outro passageiro já estava fazendo isso no meu lugar, e, sem dúvida alguma, com muito mais maestria.
Acho que tem gente que tem o dom de armar um bom barraco. Loco de cara percebi que ele era um profissional. Muito, muito boa a performance do homem. Perto dele, sou uma principiante, uma amadora no assunto. O homem, um médico, dizia sem parar em alto e bom tom:
- Não existe a menor possibilidade de eu não estar em São Paulo em duas horas. Vocês entenderam?
Ele não berrava, não gritava. Apenas falava muito alto e claro que "não existia a menor possibilidade dele não estar em São Paulo em duas horas". Pronto.
O grupo todo que embarcaria em Ilhéus se dividiu imediatamente em dois. Quando uma pessoa se afirma como um líder absoluto de forma tão inesperada, adquire imediatamente uma legião de adoradores. Os demais, os conformados, eram absorvidos pelas desculpas repetidas das atendentes da companhia aérea, que trocava o problema por outros prêmios: estadia paga em um ótimo hotel, jantar, café, condução, táxi para casa, atendimento personalizado, e mais um monte de mimos, como se você fosse a pessoa mais legal do mundo.
Mas o médico estava decidido:
- O senhor ouviu? Não existe a menor possibilidade de eu não estar em São Paulo em duas horas. O senhor ouviu?
Quando reparei, o homem que estava na frente dele era o sr. Waldemar, o gerente da TAM que tentou me consolar quando eu armei o meu barraco, há alguns meses. Depois daquele episódio que marcou o aeroporto em Ilhéus, eu e o seu Waldemar ficamos amigos. É como se ele soubesse do que eu sou capaz e como se eu soubesse como ele é paciente e compreensivo com as clientes histéricas vítimas dos muitos overbooks da TAM. Temos atualmente, eu e o seu Waldemar, uma certa cumplicidade, que eu não sabia se ia funcionar dessa vez.
O médico percebeu que tinha uma legião de seguidores e se animou. Quando alguém te incentiva numa hora dessas, você infla muito mais. O médico virou um tipo de chefe. Ele não ia deixar por menos, avisou a todos. No mesmo instante, sacou o celular e mostrou a todos.
Parecia que o celular dele era uma arma, uma bomba. Era como se até então ele estivesse apenas brincando, mas ali a guerra ia começar. Nossa. Para quem ele iria ligar? Para algum político, para o presidente da TAM, para o prefeito da cidade, para o governador?
Pior.
Ele ligava para o advogado dele, explicou à todos.
Puxa. Um verdadeiro barraqueiro tem o número do advogado na caixa postal do telefone. Eu sou mesmo uma principiante, pensei, admirada.
- Preciso papel, caneta e de testemunhas !– ordenou, com o advogado ao telefone – Vou escrever agora um documento processando a TAM.
- Eu! – levantei a mão imediatamente – Eu quero ser uma testemunha.
Foi quando seu Waldemar me viu. Ficou boquiaberto.
- Dona lúcia...!
Acho que ele achou que aquilo era um levante de passageiros, que eu estava infiltrada ali para surgir na hora de maior impacto. Percebi que ele suspirou fundo, resignado.
A coisa mudou de figura. Enquanto quase metade dos passageiros já tinha se conformado e estava pegando o táxi para o hotel, a TAM chamou o médico para conversar num canto. Como se tivesse arrumado uma saída para ele.
- Olha lá, Z. – cochichei para o engenheiro - Isso me cheira bem...
Nos aproximamos, pé ante pé. Ele ainda repetia que tinha que voltar para São Paulo, mas estava mais calmo. Acho que alguma coisa muito terrível ia acontecer se ele não voltasse. E como ele era médico, era melhor nem perguntar. Vidas poderiam estar em perigo, óbviamente. E além disso, tinha o tal advogado dele. Acho que turma da TAM resolveu não brincar em serviço.
E eu decidi que era hora de agir.
- Waldemar, venha aqui - pedi ao homem - O que foi que você cochichou para o médico?
- Como assim?
- Eu vi você propondo alguma coisa para ele. Eu também quero voltar hoje e nem comecei ainda a me revoltar. O que foi?
Ele olhou fundo nos meus olhos e não falou nada.
- E além de tudo, tenho um monte de cocada, seu Waldemar. Vamos, diga.
O senhor Waldemar a-do-ra cocada.
- Bom... – ele começou a falar bem baixinho - Tem um vôo que vai para Salvador às 11 horas da noite. E de lá tem um outro vôo que vai para São Paulo à meia noite. Chega em Cumbica às duas. Que acha?
- Quantos lugares?
- O vôo está lotado. Mas arranjo para vocês.
- Eu topo – resolvi – fechado.
- E as cocadas? – ele lembrou, sorrindo.
Abri a sacola e dei dois pacotes para ele. Valia a pena.
Chegamos em São Paulo de madrugada, mas chegamos. O médico me deu um cartão e eu ofereci umas cocadas. Sei lá, a gente precisa sempre ter um trunfo para uma hora dessas.
Quem não tem advogado, que tenha ao menos cocadas.

Nenhum comentário: