quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Déo, Ringo, gato, sangue, cocô


Minha irmã Ângela estava esperando um telefonema pra um emprego novo. O dia todo atenta ao telefone, aquelas coisas. Tinha ensaiado um monte de frases, argumentos, citações, decorado frases, dependendo do que a pessoa falasse. O telefone toca, ela corre a atender.
- Alou.
Era a moça do emprego. Opa. Hora de ouvir o que ela tem a dizer e iniciar o teatro todo. Ela se apruma na cadeira e olha para a frente. Quando vai começar a falar, entra um passarinho endoidecido na sala. Ai. Um passarinho, coitadinho. Minha irmã adora bichos. Tem cachorro, gatos, tartarugas, tudo que for animal e estiver precisando de abrigo ela adota.
- Alou, oi - e ela olha o passarinho, aflitíssima - alou, ai, um probleminha, péra.
A empregada podia ajudar, ela pensa. A empregada da Ângela se chama Déo. Segundo ela, se a gente chama a Déo um monte de vezes parece que toca um sino: Déo, Déo, Déo.
- Déééo. Déo?
O passarinho começa a voar de lá pra cá, desesperado. Ela não sabe o que fazer. Resolve pegar o bicho, mesmo segurando o telefone.
- Déo? Déo, Déo, vem rápido! Déo, Déo, Déo, ai meu Deus.
Nisso entra o Ringo, o cachorro, que ouviu a gritaria. Olha o passarinho e quer matar, comer, pegar, estraçalhar aquele intruso. Fica mais maluco que o passarinho, e a Ângela começa a gritar mais ainda.
- Déo, Déo, Déo, não, pára Ringo, Ringo, pára Ringo!
Se não bastasse isso, surge o gato, que se chama gato mesmo. O gato também resolve matar, comer, pegar, estraçalhar o pobre do passarinho. Céus.
- Ringo, não! Déo, Déo, Déo, cadê você, Ringo pára, ai, o gato, o gato também não! Pára gato, Déo, Déo, Déo, socorro, Ringo pára, Ringo, sai gato!
Ela consegue pegar o bichinho, em pânico, mas o coitadinho quase escapa da mão dela porque o Ringo avança e arranha um pouco o pobrezinho no meio da luta.
- Sangue! Ringo, Ringo pára, gato, pára, ai sangue, sangue tadinho, Déo, Déo, Déo me ajuda, Ringo, pára, sangue não, ai, Déo!
Segura o passarinho com força junto do corpo dela e sai correndo para colocar lá fora, seguida pelo Ringo, pelo gato e pela Déo, que apareceu enfim, quando vê que o passarinho fez cocô.
- Cocôôô...! Cocôôô...!
Sai correndo e gritando, a blusa, a mão dela toda suja.
- Ai, cocô não! Déo, ajuda, Déo, Ringo, pára, gato, pára, ai, cocô, ãããeeee, ãããeee, sangue, sangue, cocô, cocô!
E ela solta o passarinho, que mesmo machucado, sai voando. A Ângela, a Déo, o Ringo e o gato olham o passarinho salvo lá longe e depois de um pequeno silêncio ela se lembra que ainda está... com o telefone na mão.
- Alou?
- Ângela? Tudo bem por ai?
Trabalho é trabalho, ela pensa, retomando a conversa.
- Tudo ótimo, só tive um probleminha de nada aqui. Vamos lá.
E passou a falar tudo que tinha decorado.
.
- Lúcia, pensa, você contraria alguém que, sem nem te falar oi no telefone berra Déo, Déo, Déo, Ringo, Ringo, Ringo, gato, gato, gato, sangue, sangue, sangue, ãããeee, ãããeee, ãããeee, cocô, cocô, cocô!, e que depois não explica nada? Pois bem. Hahaha. Eles me contrataram mesmo assim, acredite.

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