terça-feira, 10 de abril de 2007

Bete, a feia


Sabia que uma hora não ia mais dar. Começou com um embaçamento, depois com uma aflição enorme para conseguir ler os cardápios dos restaurantes, depois um franzimento sem fim para ler o jornal de manhã. Logo em seguida, no outro mês, bastava alguém conversar comigo muito de perto que eu ficava atordoada. Dá pra você ir um pouquinho mais pra trás?, eu passei a pedir, envergonhada. No micro eu não notei, pois como é possível aumentar o corpo das letras, a gente tira de letra a coisa de escrever. Óbvio, pensei. Demora mais chega, não estou mais enxergando direito. Iii, filha, isso é vista cansada, falou minha mãe, e você vai ver, só piora com a idade. Ô droga, pensei, resignada. Logo eu que sempre me gabei da minha vista de lince. Compra um óculos de farmácia, me recomendaram. Escolhi o que tinha o grau menor de todos, com raiva daquilo, esperimentando escondida uns modelos horríveis no Drogão. Levei para casa, não adiantou nada. Além de ainda embaçar um pouco, dava uma putz dor de cabeça. Melhor ir ao oculista, falou o Zé, do alto dos anos seus óculos. Isso pode piorar.
Lá fui eu ler as letrinhas na parede. Assim melhora? Perguntava o cara colocando lentes na minha cara enquanto eu me embaralhava na leitura. E assim? Essa ou essa está melhor? Sai com a receita na mão e uma tristeza no coração. Pô. Entrei pela primeira vez numa ótica para escolher uma armação, achei a coisa muito mais complicada do que eu imaginava. Precisa ver o que fica melhor no seu formato de rosto, a mocinha explicou. Nunca tinha reparado no meu formato de rosto tampouco na relação do meu nariz com meu olho e minha testa. A senhora tem que ver se o óculos apóia direito no nariz. Tem gente que tem nariz mais baixo e o óculos fica caído, ela explicou, paciente. Tive o maior medo de ter nariz baixo. E se é e leitura a senhora tem que olhar por cima, então a armação não pode ser muito grande. Eliminamos mais da metade do mostruário da parede e ficamos somente com aqueles de formato de óculos de vovó. Mãe, compra um desses vermelhos, falou minha filha. Vermelho, filha, tá louca?, retruquei, querendo que uma armação que tivesse cor de pele para sumir no meu rosto. Escolhi o mais leve que consegui e o que tinha menos cara de vovó Donalda. Demorei duas semanas para ir buscar de raiva de ter que usar aquilo. Uma hora não deu mais para fingir que não era comigo. Aqui estou eu com ele do lado, relutando para não usar e fingindo que não é o alívio que é enxergar aquelas letronas. Desde então uma frase está retumbando sem parar na minha cabeça. Bete, a feia; Bete, a feia; Bete, a feia. Droga. Mil vezes usar tarja.

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