segunda-feira, 29 de maio de 2006

olhos fechados


Odilon Redon
Les yeux clos, 1890

Eu não sou boa de ginástica, não faço quase nunca. Mas tenho certeza que não é para sempre, é que apenas a minha hora de esportista ainda não chegou. Quando crescer um pouco mais, eu sei, vou ser maratonista.
Aguardem.
Enquanto isso, eu ando. Duas ou três vezes por semana eu vou até o parque Vila Lobos, que é aqui perto de casa, e ando durante uma hora e meia. Já alguma coisa. O parque é o máximo e está cada vez mais bonito, ainda mais agora que está sendo ampliado. Nos finais de semana fica apinhado de gente, é bárbaro ver um espaço público que funciona, que as pessoas usam, que está bem cuidado.
Legal.
Mas não era isso que eu queria falar. Eu queria contar uma coisa que eu faço há anos e que me dá o maior prazer. É uma coisa esquisita de fazer e ainda por cima confessar, mas vamos lá.
Eu sempre entro por uma entrada lateral do parque, que fica mais perto da minha casa. Tenho um roteiro da minha andada lá dentro, como se eu fosse um carro de fórmula um dentro de Mônaco, e sei que aquele roteiro dá a tal hora e meia da minha caminhada.
Bom, no meio desse roteiro eu passo na frente ao portão principal, que é um espaço enorme, cimentado, plano e vazio. É uma espécie de praça da apoteose quadradona e imensa, sem árvores no meio. É um lugar lindo, na minha opinião, pois a quantidade de céu que se vê ali é enorme. Em São Paulo é difícil você ver um ceuzão e é quase impossível você ficar no meio do nada. O máximo aquilo.
Bom, aquele lugar imenso está bem no meio do meu caminho. E ali eu faço uma coisa estranha. Eu ando de olhos fechados.
É maluquice, mas basta chegar naquele lugar enorme e cimentado que eu fecho os olhos e ando sem ver para onde eu estou indo um tempão. Acho uma delícia fazer isso. Gente, pensa. Onde a gente pode andar de olhos fechados com segurança um tempão, sem perigo?
Tanto faz se eu andar um pouco torto, aliás acho que ninguém nunca reparou que estou de olhos fechados. Eu adoro isso, me dá um enorme alívio. Por algum motivo muito estranho, sinto que posso me atrever a essa maluquice, pois ali não há abismos para cair, não há perigos eminentes, não serei atropelada, não serei assaltada, não serei julgada.
Ali pode, essa é a questão.
Não sei direto o motivo dessa esquisitice ser uma coisa tão legal pra mim. Acho que é porque é muito complicado ser mulher, mãe, dona de casa, profissional e morar nessa cidade tão confusa. Tudo meio que não pode, o mundo de uma mulher é cheio de “nãos”, de obrigações, de coisas a fazer, de funções a cumprir. A minha vida, assim como a vida de um monte de mulheres, é, na maior parte do tempo, colocar uma complicada máquina para funcionar, com funções que vão desde abastecer a casa, educar e alimentar a família, planejar os horários dos filhos e da vida profissional (afe, como eu detesto isso), trabalhar como se fosse a única coisa que você faz, cumprir funções sociais e ainda ser saudável, pois sem saúde as coisas não funcionam direitinho. Eu consigo (não sei como) e minha vida anda, com os olhões bem abertos. O que me aborrece são os “nãos”. Depois de cumprir todos esses “sins”, vem um monte de “nãos”. Não pode sair à noite sozinha, não pode dar chilique, não pode comer muito, não pode dançar muito, não pode beber muito, não pode rir muito, não pode não programar, não pode não fazer, não pode, não pode.
Não pode nada de olho fechado.
Acho que é por causa disso que aqueles cinco minutos são legais. Aquilo, gente é quase uma morte. Passos permitidos para o nada, para o além, para o perigo. Pois no meio disso tudo, naqueles cinco minutos eu posso quase morrer, andando sem saber para onde de olhos fechados, que pode.

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