quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

pingos e torós


Heide Fasnacht
Rain On Window II, 2002
Colored Pencil on Rag Paper
40 x 60 in.
Finalizava meu trabalho no final da tarde de ontem quando começou a chover. Aquela chuva forte, molhada, que derruba o bafo quente como se tivesse ódio. Existem certos fenômenos da natureza que tem atitudes bem humanas.
Fala a verdade.
Eu trabalho em casa, numa salinha no andar de baixo, bem na entrada. Minha casa é antiga, e acho que esse lugar foi feito para ser escritório. Já mudei a mesa de lugar algumas vezes, mas o melhor é ficar de costas para a janela por causa do sol, ainda mais nessa época do ano.
Ouvi o barulho da chuva e senti o vento. A eminência de uma tempestade tem ventos e barulhos estranhos. É um tipo de mini fim de mundo, reparem. Quando percebi os primeiros pingos, me levantei rápido.
- Maria! Maria! Mariiia!
Corri para a sala, fechei rápido a janela, pois a ventania já estava respingando o chão. A Maria surgiu feito um azougue e despencou escada acima para fechar as janelas dos quartos. Eu corri para a copa, cerrei a janela num supetão e subi atrás dela.
Engraçado, duas malucas, rodando desembestadas.
Demos de cara uma com a outroa e ela me olhou, esbaforida.
- Fechou o quarto do Chico?
- Sim.
Eu olhei para ela.
- Fechou a porta da varandinha da Nana?
- Fechei.
Descemos as duas bufando. A chuva caia forte, e a umidade e o vento fresco estavam pela casa. Mas eu e a Maria não voltamos aos nossos trabalhos. Ficamos as duas perambulando, ora olhando uma janela, ora para outra, ora indo para a varandinha da frente.
- Será que vem pedra?
- Olha a ventania.
- Ichi. Vai cair árvore. Olha como balança.
- Tomara que não inunde a Lapa.
- Olha que poça enorme.
Olha. Acho dificílimo trabalhar quando chove. Um dia, quando trabalhava num escritório, estava numa reunião de projeto com cerca de dez pessoas quando começou a cair um toró. A sala tinha uma janela grande, do tamanho da sala, que dava para direto para a rua. Bom, foi engraçado. Desde a hora que começou o temporal até acabar, ninguém falou de trabalho, nem de reunião, nem de obra. Parecíamos malucos, todos, com as cadeiras viradas para a janelona, como se aquilo fosse um cinema.
Todo mundo olhando.
Apenas olhando.
Não sei exatamente o que vemos quando olhamos a chuva. Acho que não é bem a chuva. Talvez seja a água caindo, talvez seja a molhadeira na secura, talvez seja o ódio no bafo quente, talvez seja a nossa alma, talvez seja apenas um instinto.
Mas chuva caindo e fogo pegando são irresistíveis.
Curioso também como nós, que somos civilizados, inteligentes e tão pouco selvagens, temos ainda alguns instintos. Todo mundo sente uma tempestade, mesmo sem olhar para o céu. Eu, por exemplo, que me sento de costas para a janela, sei direitinho se devo ou não correr para fechar tudo, mesmo sem olhar. Tem alguma coisa no nosso cérebro que nos alerta para o perigo de uma tempestade.
É um instinto selvagem.
Por incrível que pareça, ele ainda existe.
Esses momentos da hora da chuva são parecidos desde que sou criança. A correria, tirar a roupa no varal, os berros, as janelas e portas se fechando. E eu, como quase todo mundo, geralmente espero o limite do limite para gritar “Maria!” e sair correndo. É impressionante. Sou precavida com tudo, pago contas antes, saio de casa antes, mas meu cérebro não tá nem ai com a chuva. Talvez isso signifique que, instintivamente, eu não seja nada cautelosa. Que meu instinto natural, aquele de bicho, de animal, seja desencanado, tranquilão.
Olha que bom.
Bem, tranquilão em parte.
Morro de medo de chuva.

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