segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

dona concha


Quando fui assistir “A vida na praça Roosevelt”, do Sátyros, uma das personagens que mais me incomodou foi uma mulher chamada “Dona Concha”, interpretada por Ângela Barros. Dona Concha é uma mulher solitária de meia idade, com filhos crescidos e que trabalha há anos como secretária de uma firma falida. Mora num apartamento na praça Roosevelt com um monte de gatos e um dia descobre que tem câncer.
Essa mulher me incomodou quando li o texto, e depois, ao ver a personagem no palco, a coisa tomou forma e ela não me sai da cabeça. Vejo Donas Conchas em todos os lugares. Para mim ela é a personificação do medo de todas nós, mulheres.
Vou explicar. Minha mãe morou no mesmo prédio por 40 anos. O prédio, que existe até hoje, chama-se “Edifício Imperial”. Ali eu nasci, ali minha irmã nasceu, ali meu pai morreu. Um dia eu e minha irmã nos casamos e desde então minha mãe passou a morar sozinha no prédio, com um monte de mulheres na mesma situação que ela, muitas mães de vizinhos amigos nossos. Todas ficaram sós, sem filhos, muitas sem maridos e todas com plena consciência da sua limitação diante do mundo.
Aquele monte de Donas Conchas.
Olha. Difícil para um homem entender isso. Homens sempre têm como meta sucesso profissional, status, número de mulheres, caramba a quatro. São metas atemporais, que devem ser conquistadas desde a adolescência até a velhice. São metas que crescem e independem da idade, do momento da vida que eles estão. Já para as mulheres a realidade é diferente. De um certo modo, a vida de uma mulher finda no casamento, na maternidade, no fato de ser avó. Depois disso, não sobra muita coisa. Não existem mais homens, prazeres, desejos ou limites para serem ultrapassados.
Sinceramente? Tenho medo, muito medo da Dona Concha. A vida de todas as Conchas amigas da minha mãe que ainda moram no Imperial é a mesma. Vivem fechadas nos seus apartamentos, com consciência de terem cumprido sua missão, mas passam dias e noites sem entender o que devem fazer no mundo dali para diante. Elas são a materialização da falta da perspectiva. E o pior é que todas têm a compreensão plena da falta de uma estrada, estão paradas no meio do nada. Mas não há muito o que fazer diante daquela inevitabilidade.
Acho que vida delas já acabou, só que elas ainda não morreram.
E isso é bastante nítido.
Para muitas mulheres a vida tem apenas dois objetivos. A espera da vida, na gravidez, e a espera da morte, depois de criar os filhos. Acho que minha vida não será muito diferente disso, por isso me agarro às letras e palavras com tanta fúria: tenho medo de ser a Concha. Dentre os excluídos, ela consegue excluir-se da própria vida. Todas nós temos medo de acabar com tanta coisa nas mãos e tão poucas possibilidades. À Dona Concha não falta nada: nem passado, nem filhos, nem netos, nem emprego, nem apartamento, nem gatos, nem câncer. A Dona Concha é morna, e bastar-se com a temperatura morna é horrível. O melhor seria a água ou o incêndio, mas o pior é que as chamas nunca a destruirão. Sinto que até o fogo se esquece dela.
Sai da peça com essa sensação. Desde então tento entender porque a vida, e só ela, não basta.
Não sei.
Mas não basta.

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