quarta-feira, 2 de novembro de 2005

franka, a espiã


São frias que a gente se mete apenas porque quer arrumar trabalho.
Não é por mal. É por trabalho, eu juro.
Uma vez o Zé me disse que quem tem escritório próprio é um eterno desempregado. Concordo. Sempre vivi assim, o tempo todo tentando arrumar trabalho, e quando consegue já é hora de arrumar outro.
Bom, um dia fomos chamados para fazer o projeto de uma clínica de dermatologia, eu e meu sócio. A clínica era comandada por uma médica, uma mulher muito rica com pouco talento para a medicina, que tinha um sócio não tão rico mas com muito talento. Eles iam transferir o consultório para um local maior e mais bem equipado. Era trabalho para burro.
Numa das primeiras reuniões ela tentou explicar o funcionamento da clínica e esquematizar um fluxograma.
- Temos muitos pacientes e precisamos de muitas salas interligadas - ela explicou - E os pacientes não podem se cruzar das sala de consulta para as salas de exame ou para os centros de pequenas cirurgias, que serão três.
- Faremos alguns estudos – sugeri.
- Tive uma idéia melhor – disse a médica, a maluca da médica – Porque um de vocês não passa o dia aqui para entender o funcionamento? Se for o caso, vocês podem até acompanhar algumas das consultas.
Concordamos, sempre é melhor ver no local. Mas eu não imaginava aonde ia parar a coisa.
- Vou eu ou vai você? – perguntou meu sócio, já sabendo a resposta.
Ele jamais iria, nunca teve paciência para essas coisas. E no dia combinado lá fui eu me meter a detetive.
Céus. Que absurdo.
Bom, cheguei às nove horas e encontrei com o médico, o sócio da médica rica. Ele era um doutor jovem e bem bonitão, com uma pele lisa e brilhosa, digna de um dermatologista. Quando entrei na sala, ele me cumprimentou e me deu um jaleco branco onde se lia no bolso: Dra. Jaqueline.
- Dra. Jaqueline?
Ele sorriu, travesso.
- É uma das minhas assistentes no hospital. Acho que com esse avental você chama menos atenção dentro da sala.
- Mas eu preciso ficar dentro da sala?
- Claro! É bom, assim você vê a minha movimentação.
Achei estranho, mas tudo bem. O médico estava todo exibido para ser olhado o dia todo. Vesti o jaleco e ele chamou a secretária. Explicou quem eu era, pediu segredo e orientou-a a chamar-me de "Dra. Jaqueline".
Eu intervim.
- Doutor, eu sou arquiteta. Não acha que seria melhor eu...
Ele interrompeu, decidido.
- Não. Os meus pacientes não ficariam a vontade com uma arquiteta dentro da sala.
- E se algum dos seus pacientes for parente meu? Ou conhecido?
- Hum, não tinha pensado nisso... – ele disse, chamando a secretária de novo – Aline, traga a listados pacientes de hoje, por favor.
Li todos os nomes. Ninguém conhecido. Sentei-me na cadeira ao lado dele e peguei meu caderno para anotar.
- Olha, é melhor você usar um receituário meu para anotar. Chama menos atenção.
Deusdocéu.
A primeira paciente era uma senhora magrinha, de cabelos brancos. Tinha descamações no pele.
- Essa é Jaqueline, minha assistente, dona Miriam. Está fazendo um estágio aqui na clínica.
Eu sorri sem graça para a D. Miriam.
- Que sorte a sua, querida – me disse a mulher – ele é um médico e tanto – completou, dando uma piscadinha e sugerindo que ele era um verdadeiro galã e que eu devia aproveitar.
Fiquei ao lado dele por mais de seis horas, acompanhando todas as suas consultas, seguindo-o até a sala de exames, retirando pintas e manchas nas salas de cirurgias, arrancando fios de cabelos e observando seu vai vem nas diversas salas. Realmente ele atendia de dois a três pacientes ao mesmo tempo sem que nenhum percebesse. E não aprava quieto.
Assim foi com todos pacientes da lista e mais os de retorno. Ele na frente e eu sempre atrás, com o jaleco da dra. Jaqueline e com o receituário nas mãos, segurando um ataque de riso.
Claro que aquilo foi anti ético da parte dele e completamente anti profissional da minha. Claro que também era completamente desnecessário. Mas eu fui, e sei que muitos colegas também iriam se dependessem disso para pegar uma obra e um projeto. No final, fizemos o projeto e a obra, mas meu trabalho de espionagem foi em vão. O médico bonitão brigou com a médica rica e foi substituído por outro que usava as salas de modo totalmente diferente.
Mas até hoje, toda vez que vou a um hospital, leio atentamente o nome das médicas nos uniformes. Quem sabe um dia eu ainda dou de cara com a verdadeira a dra. Jaqueline?

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