domingo, 22 de maio de 2005

as paredes


Foi na sexta feira. Ia para uma reunião, quando, perto da Faria Lima, parei o carro num farol. Olhei para o lado, estava diante de um vazio de uma casa que acabara de ser demolida. O que antes era uma residência com quartos, garagem, quintal e jardim transformou-se num espaço mínimo, apertado entre três muros, com as cicatrizes de todos os ambientes estampadas no piso e nos restos de parede. A tinta velha dos quartos, as marcas dos quadros nas paredes, a cerâmica do piso da garagem, os azulejos do banheiro da empregada lá no fundo, na edícula. Aquilo me deu um arrepio. Me senti uma invasora dentro da memória intima de um espaço que não era meu. Aquelas marcas não eram minhas.
Não tenho o direito de olhar, pensei. Espaços não podem ser violentados desse modo.
Porque não escondem isso?
Acho que não tem nada mais triste do que uma demolição. O abandono de um lugar que outrora fora habitado é mais violento que a morte. Na morte o corpo permanece cheio. Nas demolições presenciamos o vazio, o abandono total.
Além disso, demolições expõem publicamente a intimidade do passado, a memória de uma família. Demolições envergonham e entristecem. São espaços nus em público, gelados e trêmulos diante dos transeuntes que passeiam nas calçadas. Uma demolição, no meio da vivacidade de uma cidade, encolhe os espaços que anteriormente eram gigantescos. Olhar atentamente a uma demolição nos dá a exata dimensão da nossa pequeneza.
O Zé não gosta de mudanças. Toda vez que mudamos de casa ele organiza tudo, mas me pede para ficar na casa antiga enquanto a mudança é retirada. Ele fica na nova, recebendo as coisas.
Eu sempre fico no meio das caixas e móveis, isso não me incomoda. Acho que é porque ainda restam as paredes, e eu sei que ninguém as tirará dali. E também sei que, mesmo depois da mudança, mesmo com a casa vazia e oca, posso fechar as portas e me trancar, quietinha.
Mas não suportaria a ausência de paredes. Acho que preciso de um muro. Talvez para me esconder.
Anos atrás, morávamos num apartamento em Higienópolis. Prédio velho, antigo. Resolvemos trocar todas as janelas da sala, que estavam podres de tanta ferrugem. Compramos uma nova, de alumínio pintado de branco.
É um trabalho de um único dia, é rapidinho”, explicaram os rapazes da empresa.
Chegaram pela manhã e desmontaram toda a janela. Depois do almoço içariam a janela nova e colocariam no lugar.
Olha, eu sou acostumadíssima com obras. Vivo dentro delas o dia todo. Porém, quando entrei na sala da minha casa, engasguei. Aquela não era minha casa. A rua estava ali dentro, a copa das árvores também. Me senti numa vitrine, apavorada.
Não consegui ficar ali. Desci e olhei o apartamento da rua. Alguma coisa entalava na minha garganta. Fechei os olhos. Era como estar nua em público. Era indigno. Tudo que era meu estava exposto, cru, machucado. Aquilo dava uma aflição enorme. Fui direto para o trabalho, fugida, e só voltei à noite, com janela já colocada no lugar. Não sei porque aquilo me envergonhou tanto. Acho que eu sou uma boba, todas as casas são iguais a minha, não? O que as pessoas não podiam ver? Meus sofás, minha mesa de jantar, os quadro da parede?
Não sei. Foi violento. Vi minha vida fora subitamente demolida, e provavelmente meu pânico nada tinha a ver com a janela. Talvez eu ainda não saiba conviver com um mundo fora do meu, talvez seja essa a minha natureza, talvez as casas que eu construí para me abrigarem nunca poderão ser demolidas. Não que as cicatrizes me envergonhem. Mas eu preciso de paredes, pilares e vigas firmes para sustentar o meu passado.
Ou não.
Talvez seja somente porque eu ainda estou construindo minha vida.

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