segunda-feira, 10 de julho de 2006

maus ventos




Foi durante a apresentação de Ricardo III, que fomos assistir esse final de semana. Eu fui com a família toda, e como o teatro estava lotado, tivemos que nos compor nas cadeiras da nossa fileira conforme as cabecinhas e cabeções na nossa frente, ou seja, os mais altos atrás dos cabeções e os mais baixos atrás dos cabecinhas. Incrível como tem gente que tem cabeça esquisita e a gente nem repara no dia a dia. Bom, acabei me sentando no extremo oposto do Zé, com dois dos nossos filhos entre nós. Ele ficou – tadinho - com o pior lugar, atrás de um japonês com um enorme cabeção quadrado cheio de cabelos de espeto, pois ninguém queria ficar ali.
A peça começou e notei que o Zé ria. Bom, Shakespeare é drama e drama é drama, não comédia. Portanto, não há motivos para rir em dramas.
E porque será que o Zé ria tanto?
Eu reparei de longe que ele, volta e meia, saracoteava na cadeira, falava alguma coisa para a minha filha e tinha acessos absurdos de riso que tremiam a fileira toda. A coisa continuava, e ele parecia que não conseguia se conter. Tentei olhar com um olhar repreendedor, mas ele não me via. Parecia que estava tomada por uma força maior, talvez uma pulga na cueca, um ataque epiléptico de riso, talvez possuído por uma alma penada, sei lá. Resolvi assistir a peça, pois eu ganhava mais com isso, os vizinhos de cadeira dele que dessem uma bronca. Eu já dou muita nos meus filhos.
Uma hora ele exagerou, eu olhei e ele me viu. Fiz um gesto de interrogação. O que acontecia? Ele fez uma mímica esquisita, se abanando, apontando coisas do lado dele e fazendo uma estranha dança que resultou num outro ataque. Resolvi desencanar. Dali a pouco reclamariam de mim.
Na hora que a peça acabou, vi que ele e a minha filha saíram correndo da sala, mesmo antes dos atores saírem do palco. O hall ficou lotado, e nos perdemos deles na escadaria que sobre ao térreo. Porém, quando juntamos a família toda na porta do teatro, olhei confusa para o Zé.
- Pode me explicar?
- Nossa, que pesadelo.
- Zé, você teve acessos de riso durante a peça toda?
- Era nervoso. Já riu de nervoso e sem-graceza?
- Não estou entendendo nada.
- Lu, você não imagina o que eu passei.
- Eu vi que você teve espasmos durante toda a apresentação. Alergia shakesperiana? Era algum problema com o japonês do cabeção quadrado?
Ele me olhou, compenetradíssimo.
- Lu, do meu lado tinha um homem com um problema seriíssimo de flatulência.
- Flatulência?
- É!
- Gases?
- É! Um tipo de flatulência aque acho que era fatal! Ventosidade mórbida! Gases tóxicos! - ele dizia, rindo sem parar.
- Pára, ai que nojo! Quem? Aquele gordo de cinza?
- Argh, ele mesmo. E pensa que é fácil? Aquilo foi um pesadelo! O Shakespeare no palco e o homem a soltar aqueles gases sem parar, você não sabe o que eu passei, caramba!
A Nana interveio.
- Mãe. Até eu senti. O papai falou a verdade, coitado. Os gases vinham e voltavam, o homem da camisa cinza estava completamente podre. E o pior foi na saída. Apesar de nós termos saído correndo na hora que as portas se abriram, não sei como mas o cara saiu antes. Quando vimos ele estava bem na nossa frente na escada. E ali...
O Zé interrompeu.
- Ali, Lù, quando ele estava dois degrauzinhos na minha frente, em pé, e em posição estratégicamente favoravel para me derrotar de verdade, ele liberou geral e nos aniquilou de vez. Bem na minha cara. Eu te pergunto: havia necessidade de eu ter que passar por isso? Um cabeção quadrado imenso e um aniquilamento por gases letais?
- Nossa.
Ele suspirou.
- Que Shakespeare, que Ricardo, que nada, Lu. Isso que foi tragédia...

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