sexta-feira, 3 de março de 2006

a vizinha e os presentes

(atenção: você também pode ler essa crônica na revista paradoXo - clique aqui )

Ela tinha acabado de se casar. A casa ainda cheirava a tinta, a reforma tinha acabado, mas os móveis ainda não ocupavam a sala.
- Não repara, só o quarto e a cozinha que ficaram prontos a tempo... – ela disse, dando risadinhas – os sofás chegam até o final do mês, a mesa de jantar vem essa semana.
Olhei ao redor. Tudo caprichadérrimo. Branquinho. Limpinho. Clean. Moderníssimo.
- É... é você que está decorando?
Explicou que não, tinham contratado um decorador. Falou o nome, era um cara famoso. Eu conhecia?
- Sim, claro – respondi, sem entrar em detalhes.
- Ah. Ele é o máximo - ela disse – Um fofo. Ficamos super amigos.
Era a vizinha do andar de cima de um cliente meu. E eu não estava ali para papear, mas para resolver um assunto chatérrimo: a tal reforma que ela e seu decorador fofo fizeram fez causou um vazamento enorme no banheiro de baixo.
- Olha, mas fica tranqüila – ela me disse, educadamente - Eu vou pedir para o meu engenheiro ir até lá, dar uma olhada e resolver esse problema, tá?
Antes de sair, ela me ofereceu um café. Aceitei. Ela saiu da sala ticando os saltos no piso de madeira novinho para pedir à copeira. Olhei ao redor. A casa estava entulhada de caixas.
- São presentes? – perguntei quando ela voltou.
- São. Ganhei de casamento.
- Que delícia. Você ganhou muita coisa... – comentei, sendo gentil – São presentes bonitos?
- Ah. Isso eu não sei.
Estranhei.
- Você não abriu?
- Abri, claro, até fiz a lista para agradecer... – e ela hesitou - Mas não sei se são... bonitos. Estou esperando o decorador olhar. Ele que vai me dizer, entende?
Não entendi.
- Como assim? O que tem o decorador a ver...
Ela me interrompeu.
- Ele está na Europa e chega semana que vem. Disse que vai olhar tudo e dirá se é bonito – diante da minha cara pasma, ela emendou, na maior naturalidade, olhando as caixas fechadas – E só daí eu vou saber se devo trocar.
Por um instante eu fiquei completamente muda. O que falar para aquela mocinha loira, elegante, sorridente e tão segura da sua falta de gosto?
- Mas... você... você gostou ou não?
Ela exclamou como se não houvesse outra coisa a dizer.
- Ah, não dá para saber, né? Eu não entendo de decoração, nem de presente!
Pois esse é o mundo que vivemos. Assim como essa moça, existem milhares de mulheres incapazes de dizer se gostam de um presente ou não. Nunca uma coisa me pareceu tão despropositada. Os presentes foram comprados para ela, por amigos dela, e ela é incapaz de dizer se gosta. Mundo mais absurdo, esse nosso.
Fico espantada ao ver como, a cada dia, estamos cada vez mais longe da capacidade de simplesmente viver. Como a humanidade pode transformar uma coisa deliciosa que é ganhar um presente num enigma a ser decifrado por um decorador fofo? Podemos transferir o nosso gosto pessoal para um desconhecido?
Não sei, mas acho que faz parte do homem escolher, selecionar, dizer se gosta. São essas diferenças que fazem cada um de nós únicos, exclusivos. Tá, hoje se consome tudo, mas é estranhérrimo alguém consumir “gosto pessoal”. Consumir coisas, férias e assuntos ainda vá, mas... gosto?
Mas a mocinha em questão consumiu o decorador da moda, o seu “bom gosto” e sua capacidade de julgar. Se as coisas forem desse modo, daqui a pouco não saberemos mais comprar roupas, escolher comidas e sequer achar nossos parceiros.
- É seu namorado?
- Ainda não sei, estou esperando meu decorador decidir. Você sabe, eu não entendo de homens...
Sai dali chocada. Na minha opinião, nossa casa é nosso refúgio, nosso canto, nosso espelho. Não consigo entender uma casa que você não tem domínio. Onde essa moça vai rir? Onde vai chorar? Nesse enorme teatro, provavelmente eu deveria perguntar isso ao decorador.
Ah, o vazamento? Bom, o engenheiro foi olhar e arrumou. Muito antes do decorador decidir se ela deveria gostar dos presentes ou não...

Nenhum comentário: