quinta-feira, 16 de março de 2006

ÓINC!



Eu e meu sócio tivemos escritório num imóvel de um amigo nosso, que foi viajar por um ano e nos emprestou. Como o lugar era grande e cheio de salas, ele também emprestou para outro amigo dele, o Celsinho, que tinha uma pequena empresa de negócios e investimentos.
O Celsinho era um cara engraçado, falante, cheio de piadinhas, que adorava enturmar. Como trabalhava sozinho, volta e meia ele aparecia na nossa sala para conversar.
No nosso escritório iam sempre muitos engenheiros, empreiteiros, pedreiros, gesseiros, eletricistas, ao contrário da sala dele, que nunca ia ninguém. E sempre que aparecia alguém para falar com a gente, o Celsinho olhava pelo vidro e pimba, lá vinha tomar um cafezinho e fazer suas piadinhas. No final, acabou conhecendo todos os fornecedores e funcionários das nossas obras.
- Falai, Monteiro, e esse nosso “palmêra”, como vai?
- Ô Washington, quando é que você vai me vender aquela caminhonete?
- Opa, Geraldo! Como vão as obras? E esse coringão ai?

Pois nessas visitas ele conheceu o Geraldo, um empreiteiro mineiro muito sério, que não era de muitas palavras.
O Geraldo estava fazendo uma obra conosco e toda hora ia até nosso escritório. E sempre aparecia o Celsinho com as piadinhas, as risadas e conversas inconvenientes, apesar do Geraldo se manter sempre reservado e calado. O Geraldo ia todo mês ia para Minas para ver a família, e um dia o Celsinho, no meio do falatório, lançou.
- Ô Geraldinho, vai pra Minas aiô? Não esquece de trazer uma leitôinha 'daquelas' para o titio aqui, hein?
Bom.
O Geraldo foi para Minas no final de semana, viu a família e apareceu no escritório na segunda feira bem cedo.
- Bom dia dona luiça.
- Oi, Geraldo – eu falei, estranhando o homem ali – Quer alguma coisa comigo?
- Não. É com seu Celso. Ele está?
- Ainda não chegou.
- Posso esperar?
- Claro. Pega um café na copa, Geraldo.
Que ele queria?
Bem, o Celsinho chegou. Eram oito e meia da manhã e o Celsinho estava com a maior cara de ressaca. O empreiteiro se adiantou.
- Bom dia, seu Celso. Eu trouxe o leitão do senhor, tá lá no carro. Onde o senhor quer que coloque?
Hã?
Gente. Eu queria que vocês vissem a cara do Celsinho. Alguém já ganhou um porco numa segunda feira as oito da matina? O homem ficou em pânico, num terror avassalador.
- Ô Geradinho... - o Celsinho disse, coçando a cabeça - de que você está falando, meu filho?
O homem estava seriíssimo, como se estivesse concretando uma laje.
- Estou falando do porquinho que o senhor pediu, seu Celso. A leitoinha. Eu trouxe de lá de Minas e está na minha caminhonete. Vim deixar aqui para o senhor antes de ir pra obra.
O Celsinho arregalou o olho e me olhou. Como se eu pudesse salvá-lo.
- Geraldo, você... você trouxe uma leitoinha?
- Trouxe, sim senhor. Mas está viva. O senhor vai ter que matar, porque eu não sabia que dia o senhor ia fazer e tive medo de estragar.
Eu peguei na mão do Celsinho, rindo, e seguimos o empreiteiro até a garagem. Ele tremia todo. Não era possível. Quando olhamos o bicho, ele gelou mais ainda. Não era apenas uma leitoinha. Era um porco imenso, preto, peludo, quase do tamanho da caçamba. Quando o Geraldo se afastou, o Celsinho agarrou meu antebraço e falou baixinho, com voz esganiçada.
- Queeufaaaaço?
Eu ri. Olhei o bichão fedido.
- Coloca no seu Vectra, ué.
Ele disfarçou e disse pra o Celsinho que a leitôa era uma beleza, mas que ele não tinha como transportarnaquele momento, que tinha uma reunião fora, blá, blá.
Suava.
- Mas eu me arrumo até a hora do almoço, Geraldo – ele disse, ganhando um tempo – ... e te telefono na obra mais tarde...
- Sim senhor, seu Celso.
Subimos, o Celsinho transpirava de nervoso. Aquilo era um pesadelo. O que se faz com um porco vivo numa metrópole? Acho que foi nessa hora que eu percebi o quanto o nosso mundo é distante do mundo selvagem. Aquele porco era a natureza absurdamente pura e límpida diante dos nossos olhos virtuais e assépticos. Ele fedia, cagava, urrava, era nojento, inconveniente. Nós, humanos civilizados e estudados, não sabemos lidar com a natureza. Somos todos, eu, o Celsinho, uns bocós.
Ele falou com Deus e o mundo pelo telefone para tentar se livrar do porco. Todo mundo gargalhava no escritório.
Tadinho do Celsinho.
Quando era meio dia, ele declarou.
- Desisto. Eu pago qualquer coisa para alguém falar para esse Geraldinho que eu não quero esse porco nem morto! Aliás, alguém aqui me imagina matando um porco? Eu não sei nem matar lagartixa!
- Calma, Celsinho – meu sócio falou – Não precisa enfartar.
Ligamos para o Geraldo e dissemos que o Celso não ia querer a leitoa.
- Como não?
- Não cabe no freezer dele. Mas ele falou que te paga por ela.
O Geraldinho ficou super decepcionado. Como o seu Celso recusa uma leitoa dessas? Além disso, era presente, ele não tinha que pagar.
Não houve problema algum. O Geraldo e os peões mataram a leitoinha e colocaram no freezer de uma padaria na frente da obra. E no sábado fizeram a maior churrascada com ela.
E quer saber?
Me chamaram, chamaram meu sócio. Mas o Geraldo não chamou o Celsinho não.
Oras.

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