terça-feira, 15 de novembro de 2005

o meu avô benjamin



Se meu avô estivesse vivo, hoje completaria 100 anos.
Como ele nasceu no dia da Proclamação da República, o pai dele resolveu dar um nome em homenagem a data.
- Coloca 'Deodoro da Fonseca' – sugeriu alguém do cartório.
- Já colocaram esse nome em alguma criança hoje? - ele perguntou.
- Sim – falou o escrivão – mas podemos colocar o nome de 'Benjamim Constant'.
- Ótimo - resolveu meu bisavô - Benjamin Constant!
E assim, sem mais nem menos, meu avô virou o vovô Benjamim.
Não sei essa história é verdade ou invencionice da minha cabeça. O tempo passa, minha mãe sempre falou muito, eu sempre inventei muito, vai saber.
Hoje acordei pensando nas lembranças que eu tenho dele. Ele era um homem muito bravo, autoritário, que falava muito alto. Foi, sem dúvida nenhuma, o líder da família, com suas verdades e decisões. Mas não é assim que eu me lembro dele. De um certo modo, o meu avô me ensinou a cuidar dos outros.
Ele era médico. Morou a vida toda numa pequena cidade do interior, tinha o consultório em casa, ajudou a edificar a cidade e o hospital. Como toda pessoa que faz o que gosta, ele morria de orgulho de tudo que construiu: a família, a cidade, do fato de ser o primeiro médico do local e do hospital que ele próprio levantou.
Eu era a neta mais velha, ele adorava passear comigo pela cidade e pelo hospital. Hoje em dia, duvide-o-dó que qualquer avô possa levar um neto para passear num hospital. É errado expor uma criança aos males e aos vírus dos pacientes internados, mas naquela época acho que não passava pela cabeça de ninguém, muito menos do meu avô. Ele tratava os pacientes em casa e sempre levou os netos ao hospital.
Assim, convivíamos com as doenças, enfermidades e indisposições dentro de casa, fora de casa, nas visitas, sem problema nenhum. Uma pessoa doente, para ele, não era um foco de contaminação: era alguém que precisava de cuidados, de carinho, de um médico.
Quando ele me chamava para ir com ele, eu corria, toda feliz. Era um mundo mágico aquele hospital antigo com aqueles corredores encerados. Percorríamos os corredores de mãos dadas, andando de enfermaria em enfermaria, olhando um por um todos os pacientes deitados.
- Seu Ambrósio, boa tarde, seu Ambrósio. Essa é a minha neta Lúcia, que hoje veio fazer as visitas comigo.
- Ô dona Madalena, bom dia, dona Madalena. Eu trouxe aqui a minha netinha para ver a senhora hoje, dona Madalena. Lúcia, fala bom dia para a dona Madalena.
- Como vai o senhor, seu Brás? Lúcia, cumprimente o seu Brás. Ele gosta tanto daqui que voltou duas vezes. Seu Brás, essa aqui é a Lúcia, minha neta.
Eu cumprimentava todo mundo, me sentindo muito importante. Eles me davam a mão, davam beijos, sorriam, batiam na minha cabeça. Afinal eu era a neta do dr. Benjamin. Meu avô tirava os curativos, olhava as feridas, os cortes, me pedia o estetoscópio, o termômetro. Avaliava os gânglios, tirava a pressão, apalpava os inchaços, tudo comigo ao lado. A visita sempre terminava na cozinha do hospital, onde as freiras me davam leite e biscoitos no meio daquelas panelas enormes.
Sempre tive uma relação muito diferente com hospitais. É uma certa familiaridade, uma intimidade e nenhuma aflição das doenças da carne, que, no final das contas, quase todas tem a sua cura. Não me incomodo ao olhar feridas, não ligo para choros de dor, não fico aflita com pessoas doentes. É como se eu soubesse que, de um certo modo, sempre existirá um médico, um avô, um carinho.
Talvez essa tenha sido a sua maior herança. Cuidar dos outros. Não somos melhores que ninguém, essa é a questão. E cuidar é apenas isso: mostrar as coisas que você gosta e prestar atenção às dores, medos e alegrias alheias. Meu avô cuidava de mim e cuidava dos seus pacientes da mesma maneira. Acho que éramos igualmente importantes na vida dele.
Quando penso nos meus escritos hoje, penso no meu avô. Eu gostava dele, e mostro agora ele a vocês. Apenas isso.

Nenhum comentário: