segunda-feira, 7 de novembro de 2005

dentes e parentes



Foi apenas uma coincidência.
O Zé teve que tirar o dente do siso, mas que era para ser uma coisa simples, complicou. O dente espatifou na hora de sair, e a operação arranca-dente, que era para durar menos de uma hora, durou quase três. No dia seguinte ele acordou inchado e com uma enorme mancha roxa-esverdeada que cobria a bochecha. Parecia que tinha levado uma surra, e, de um certo modo, levou. Resolvemos ficar o final de semana em casa, quietos, para não ter que explicar para Deuseomundo.
Bom, o Zé é daquele tipo de pessoa que se impressiona com coisas de doença. Eu não ligo, fui filha e neta de médicos, mas ele se olhava de meia em meia hora no espelho com uma espécie de sofrimento deslumbrado, reparando em minúcias, preocupado.
- Olha que esquisito. Está roxo no meio, verde em volta. E esse gosto na minha boca? Deve ser sangue.
- Zé, não tem sangue nenhum na sua boca – respondi, investigando.
- Nossa. E se for pus?
- Credo, Zé. Não é pus, você está cicatrizando direitinho.
Ele voltava ao espelho.
- Agora está amarelo nesse cantinho.
Achei que passaríamos o final de semana assim, ele atormentado e eu abrandando os seus pânicos, quando o telefone tocou. Era alguém da família dele, avisando sobre a morte de uma tia. O velório seria naquela tarde.
- Ichi. Será que eu vou?
- Se está doendo não vai, a gente avisa que você tirou o dente.
- Não é isso. Velório é velório, eu devo ir.
Concordei. O Zé perdeu o dente, mas a família perdeu uma tia. Uma tia não se compara com um dente. Nos arrumamos. Fomos.
Claro que o Zé estava bizarro com o inchaço e a cara roxa. Sabíamos que teríamos que explicar para todo mundo que ele tirou o dente, que foi uma cirurgia complicada, mas achamos que aquilo, perto da morte, era uma coisa ínfima, pequena, que passaria despercebida. Afinal, uma morte.
Adentramos no recinto e passamos a cumprimentar as pessoas. O Zé na frente, eu atrás. O clima era de consternação, de pêsames. Porém, de repente ouvi murmúrios bem exacerbados. Parecia que alguém estava tendo um ataque. A voz, obviamente feminina, dava berros estridentes num tom de voz exaltado. Velório sempre tem isso, a morte deixa algumas mulheres com nervos a flor da pele.
Assustei. Seria alguma prima, filha ou mãe desesperada? Todo mundo olhou ao redor, preocupado.
Era uma das irmãs da falecida. Mas ela não berrava por causa da morta. Ela berrava por causa do... Zé.
- Titine! Você está tooodo deformaaado! Que é isso, Titine! Defooormaaado!
Titine é o apelido de infância do Zé. Olhei para ele e ele estava, além de roxo e inchado, vermelho igual a um pimentão. A tia, na emoção e tristeza de ver a irmã morta, olhou instintivamente para o Zé, viu seu rosto roxo e, sem pensar, pensou imediatamente na falecida. Acho que as pessoas, quando estão transtornadas diante da inevitabilidade da morte, não pensam como a gente pensa. Falta um tanto de lógica e bom senso. Óbvio que a morte da tia não tinha nada a ver com o dente do Zé, mas como a tia morreu de repente, sem sofrimento, sem doença e sem inchaço, a irmã, no seu inconsciente, achou que faltava alguma coisa. E quando viu o Zé cheio de hematomas horríveis, entendeu. A morte súbita da irmã se completou com a visão do rosto inchado e roxo do sobrinho.
Acho que o Zé, com seu hematoma, de um certo modo fechou o ciclo da vida e morte da tia.
Coitado.
Tudo que ele queria era sumir, mas depois do grito “titine-você-tá-todo-deformado” todas as pessoas vivas olharam para ele para ver o grau da deformidade que fizera a tia berrar tão alto. Devia ser tão horrível quanto a morte, obviamente. Os que sabiam quem era “Titine” olhavam diretamente para ele, e os que não sabiam procuravam uma pessoa “bem” deformada. O local, que já tinha ares sepulcrais, adquiriu um real silêncio de morte, e as palavras “titine-deformado” ecoavam no salão sem parar.
Era impossível salvá-lo daquele pesadelo.
Foi ele mesmo que encerrou a questão. Olhou bravo para a tia e disse num tom seco.
- Não exagera, tia. Eu só tirei o dente do siso, coisa de nada – falou, irritado.
Voltamos para casa e ele não reclamou de mais nada. E como vida continua, o inchaço desapareceu mas a frase ficou na nossa vida até hoje. Toda vez que alguém se desespera ou que sentimos um clima de pânico por perto, ele me olha e brinca:
- Titine, você tá todo defooormaaado!

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