sexta-feira, 5 de agosto de 2005

a ilha



Existe um lugar no mundo que fica exatamente entre as duas mãos da avenida Rebouças, um corredor de carros e ônibus daqui de São Paulo. Essa avenida é um dos lugares que mais conheço na vida, ou, pelo menos, um dos lugares por onde mais passei. Nasci lá em cima, no espigão da Paulista, hoje moro aqui em baixo, em Pinheiros. Já subi e desci aquela montanha milhares e milhares de vezes, menina, moça, solteira, casada, com filhos, sem namorado, apaixonada, com meu fiat, com meu gol, com minhas peruas, de ônibus, a pé, de carona, de táxi, bêbada, sã, raivosa, feliz, chorando, cantando, nervosa, sem grana, parindo, lacrimejando, com febre, suspirando, gargalhando.
E mesmo depois disso tudo ainda existe um lugar no meio das duas mãos da avenida Rebouças, exatamente como existia há vinte anos. Uma ilha de, no máximo, um metro de largura, com algumas árvores que sobrevivem apesar dos sopros de gás carbônico e do barulho ensurdecedor.
Que diabo de lugar é uma ilha no meio de uma avenida? Posso estar ficando maluca, mas tem gente bem mais maluca que eu. Pois a tal ilha, aquele lugar sem serventia alguma que não é calçada, rua nem praça, um lugar que não tem nem largura pra pista de cooper, foi reformada há dois anos pela nossa ex-prefeita para se tornar uma coisa que não sei explicar o que seja.
Olha, não escrevo para fazer uma homenagem pra São Paulo e muito menos pra fazer uma declaração de amor para a avenida, que, aliás, não lembro ter adorado. Ô transitozinho que tem ali. Queria era entender o que passa na cabeça dos governantes, ou, pelo menos, na cabeça da pessoa que resolveu reformar a ilha do meio da avenida Rebouças.
É isso mesmo. De onde é que tiraram que aquele espaço entre duas vias de tráfego tem que ser tratado como um canteiro, como uma jardineirazinha igual aquelas que ficam ao lado dos muros das nossas casas? Pois alguém decidiu que iria plantar, naquele espaço mínimo e afogado, arbustos e folhagens lindos e graciosos.
Um lindo jardim.
Óbvio que não tem cabimento por um único e básico motivo. Como que se “rega” uma jardineira no meio da Rebouças?
Com regador?
Como se cuida? Como se tira o mato, se nem dá para chegar ali?
Além desse fato óbvio que torna insólito o plantio, noto outra coisa interessante. Como as pessoas geralmente atravessam fora da faixa e destroem os arbustos, quem “bolou” o paisagismo resolveu duas coisas: as plantinhas e arbustos deviam ser bem espinhudas e tinham que ser plantadas bem pertinho umas das outras para dificultar a passagem de qualquer ser, humano ou animal.
Resultado: além de impor à vegetação um martírio, impôs-se aos pedestres desobedientes uma punição perigosíssima: cortes, machucados e, quem sabe, uma queda na pista de alta velocidade da avenida depois de tropeçar e se embaralhar nas plantas.
O que eu plantaria ali? Ora, nada, gente. Absolutamente nada. Ilha de avenida lá é lugar de plantar plantinhas rasteiras? Que idéia de girico. Faz um piso, coloca uma grade e planta árvores, que por serem altas podem respirar. Além disso, árvore tem autonomia, não depende de regas ou cuidados.
Inacreditavelmente alguns dos pobres arbustos ainda estão lá. Secos, maltrapilhos, esquálidos, mas vivos. Num lugar estranho entre duas vias de tráfego, sobrevivendo. Uma tristeza.
Toda semana, quando tenho de ir ao dentista, passo por ali. Sei lá. Morar numa metrópole como São Paulo é exatamente assim, e às vezes eu me sinto igualzinha a aqueles arbustos da Rebouças. Uma mulher seca, sem ar, esquálida, maltrapilha, vivendo no meio de veículos rápidos demais que sobem e descem, afogada na fumaça e na pressa dos outros, e inacreditavelmente viva.
Frankamente, quando eu crescer eu quero ser árvore, viu?

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