domingo, 17 de abril de 2005

barcos e cavalos



Algum tempo atrás, logo depois de acabar uma reforma numa casa de praia, me ligou a decoradora. Ela queria que eu a acompanhasse numa visita para montar a casa. Disse que, além de levar coisas novas, ia separar uns objetos e quadros que ela achava que não iam ficar mais lá.
Chegamos e percorremos os ambientes. Ela na frente, na maior exibição, mostrava alguns objetos e móveis e dizia, apontando com a ponta da lapiseira, quem ficava e quem ia embora.
Eu atrás, muda, boquiaberta.
Na hora achei aquilo a coisa mais estranha do mundo. Eu jamais conseguiria fazer um julgamento tão cruel de tão simples objetos. Podia a imaginar a história que cada um deles carregava, vieram de todos os lados do mundo e de diversos tempos da vida de uma família para parar naquele beira mar. Eram parte da vida de uma pessoa. Ela nem aí.
- Todos os barcos, peixes e conchas saem - ela decidiu, categórica.
- Barcos e peixes? - eu perguntei, sem entender a quais barcos e peixes ela se referia. Afinal, estávamos na praia.
Ela suspirou, dando a entender que eu era muito burra e que ela teria que me explicar toooda a teoria dela. Assumiu ares professorais.
- As pessoas fazem coisas ridículas, lúcia. Pense uma coisa. Porque as pessoas acham que as casas de praia devem ser decoradas com motivos marítimos? Coisa mais cafona! Só porque você está na praia precisa entupir a casa de barcos e peixes? Não basta o que tem lá fora? – e ela apontou o mar, rindo – Não, não. Não precisamos de nada disso! Os peixes ficam no mar, os barcos na água e as conchas dentro d’água. Vamos anotar o que vai embora daqui... cinco barcos feios-que-dói, dois peixinhos horríveis, dois potes de conchas e olha, um pirata! Não acredito!
Diante da minha pasmaceira, a decoradora se sentou no sofá, como se aquela fosse uma situação completamente desgastante para ela.
- Ahhh. A mesma coisa acontece nas casas de campo. As pessoas fazem casas de fazenda, de campo, de montanha e enchem de patos, cavalos, ferraduras. Deusmelivre. É demais. Isso acaba comigo.
- Eu... eu nunca tinha pensado nisso – falei, sem graça.
- Detesto decoração com temas. Decoração não pode nunca ter tema. É cafona, muito cafona!
Ichi. Tema era... cafona? Tentei me lembrar se tinha algum destes objetos na minha casa – para rapidamente me recordar que, graças a Deus, não tenho casa de campo ou de praia – e avaliar que, se o mesmo pensamento é válido para as casas da cidade, o que seria cafona numa casa de cidade? Predinhos? Carrinhos? Será? Fiquei confusa, mas tive certeza que, diante do julgamento daquela mulher tão chique e elegante, alguma coisa eu deveria ter errado na minha casa, com certeza. Eu senti pelo olhar que ela me deu ao me explicar a teoria: eu era uma cafona.
Chamar um decorador é isso. Você compra regras dele para usar a sua casa. Pouco importa se o peixinho sobre a mesa foi teu filho que pintou num trabalho da escola, pois a inocência da infância não cabe nas regras da decoração. Pouco interessa se a barca azul foi comprada na sua lua de mel, numa tarde de passeio. Dane-se se você ganhou aquele vaso da sua bisavó. Tua história não interessa, ela não está na moda.
É cafona.
Acho muito triste pagar para alguém apagar o seu passado. Perdão, dona decoradora, perdão se eu fiquei irritada com tua lapiseira apontando para a vida alheia e mirando cruelmente para a minha vida também. Tenho em casa muito objetos que, com certeza, seriam apontados como “cafonas”. Bom, talvez todos da minha casa, tão pouco decorada. Mas são os nossos olhos, e não os dos outros, que decidem quais lembranças que carregamos na vida.
Me deu vontade de levar tudo aquilo para mim. Adotar todos os objetos que a decoradora abandonou, como filhos órfãos. Mas eu apenas olhei para ela com pena, muita pena. A mulher rodopiava feliz dentro do seu medíocre poder de consumo, repetindo “cafona, cafona, cafona”.
E me lembrei muito feliz de todas as cafonices da minha sala de estar.
Ainda bem.

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