terça-feira, 12 de outubro de 2004

o sábado e a pomada

*
Era um sábado. Um dia, algum tempo atrás, os sábados à noite tinham outro sentido na minha vida. Tudo podia acontecer, e se minha vida tivesse que tomar outro rumo, tomaria num sábado. E de noite. Claro.
Hoje as coisas são diferentes. Esse sábado sequer estava sendo lembrado como um sábado, era uma reles noite no cotidiano da família, um dia à toa, sem data e sem localização no calendário. Era hora do jantar, passava das dez da noite. Foi quando a Nani, minha filha do meio, resolveu fazer um tipo moderno de sopa para ela, dessas instantâneas e horríveis, que anunciam na tv. Ferveu uma água, preparou, mas na hora de colocar no prato, tropeçou no pé do pai e derramou aquele negócio fervente na mão dela. Deu um gritinho.
"Uiii".
Deve ter doido muito, a tal sopa estava borbulhando. Ela passou a chorar feito criancinha. Corri para olhar. Para cuidar.
"ÔmeuDeus, como foi derrubar, filha?".
A mão estava vermelha, inchada, ela chorando. Coloquei água fria, paninho, "calma menina, a mamãe já passa uma pomadinha, a gente cuida, não foi nada, calma". Fui direto na caixa dos remédios. Cadê o diabo da pomada de queimadura? Ué. Nada. Procurei quem nem doida. Sumiu, desapareceu. Aquilo me deixou enfurecida. Quem tira duma caixa uma pomada importante como a pomada de queimadura e não coloca de novo no lugar? Pomada de queimadura é uma pomada urgente, não dá para ficar procurando, tranqüila e catarolando. E coisas urgentes devem ser fáceis e acessíveis.
Nada da pomada: nem na caixa de remédio, nem no armarinho do banheiro, nem no móvel do corredor, nem no meu armário de roupas, nem em nenhuma gavetinha de coisas perdidas.
A Nani choramingava, tristonha, fazendo um certo esforço para ser corajosa. Olhei para ela, melhor desistir de rodar a casa em vão.
"Eu vou comprar, querida, dois minutinhos e já volto".
Sair de carro, à noite e sozinha, sempre me parece uma grande aventura. Talvez fossem os resquícios das lembranças dos sábados à noite de antigamente, aqueles, que eu esqueci como eram. Saí apressada, era mais ou menos como cumprir uma missão rapidamente. Era ir à farmácia, comprar e remédio e levar para casa, dentro do menor espaço de tempo que fosse possível.
O estacionamento estava vazio. Parei meu carro e entrei correndo, eu era única pessoa ali dentro. Apesar das farmácias exercerem uma grande atração pela quantidade de produtos, resisti e fui direto ao balcão, com minha pergunta na ponta da língua.
"Moça, preciso de uma pomada para passar em queimadura. Já comprei uma vez, era uma pomada com o tubo azul, mas não me lembro o nome. Sabe qual é?".
Com a pomada na mão, fui direto para o caixa, abrindo a bolsa para pagar, mas tive que parar.
Já tinha alguém ali. Alguém mais rápido do que eu, que deve ter entrado depois de mim, pego algum produto e chegado ao caixa antes. Assim, me prostrei atrás da pessoa, em fila.
Era um homem. Um pouco grisalho, um pouco mais velho do eu. Pelas costas parecia uma pessoa comum. Suspirei, pensando. Um pai de família, que também tinha saído de noite para comprar uma pomada de queimadura ou um remédio para febre de algum dos filhos. Aquelas eram umas costas familiares, simples. Costas paternas, pensei, achando divertido aquilo. Acho que eu me identifiquei com elas. Com sua curvatura, com seu tamanho e seu suspirar. Espelhei-me naquele homem-pai, ali, num sábado não mais sábado, exatamente como eu, morno e parado ali na frente, os dois em fila, os dois esperando alguém aparecer no caixa da farmácia numa noite. Era nesse ponto que eu queria chegar. Pois, se eu não olhei para o rosto do homem, também não olhei também para o que ele tinha nas mãos, supondo que, claro, seria um tubo de pomada de queimadura como o meu. Além disso, a idéia da existência daquela casualidade, daquele encontro lindo de um homem-pai qualquer com uma mulher-mãe qualquer comprando a mesma coisa, num sábado, numa farmácia, era confortadora. Notar, ao acaso, que alguém vive uma vida semelhante à sua, dá forças para continuar. É como se todas as coisas estivessem tediosas, mas corretas. Era um aval para ir adiante.
Foi quando ele notou que eu estava ali, atrás dele. Virou-se, mas rapidamente me deu as costas, tímido. Aquilo me intrigou. Percebi que ele ficou tenso quando percebeu eu e meu tubo de pomada ali atrás dele. Tudo foi muito rápido, mas perceptível. Aquelas costas passaram a esconder alguma coisa. Passaram a me temer, e aquilo me incitou a descobrir o que seria.
Ainda ninguém no caixa. Alguém gritou de lá do balcão, chamando o rapaz, que provavelmente não sabia que tinha aparecido um cliente. Silêncio na nossa fila. Eu já mais curiosa com aquelas costas encolhidas. Arrepiadas. Comecei a dar uns passinhos para o lado, para poder olhar para a cara dele. Poderia ser impressão minha, ele não poderia ser quem o tipo de homem que eu supunha. Poderia ser um menino, ou um senhor muito idoso, ou quem sabe um estrangeiro ou.
Hã? Camisinhas?
Por mais que ele tentasse esconder, aquilo estava nas mãos dele. Era impossível eu não olhar de novo e de novo, para ter certeza que aquilo era verdade. Camisinhas. E, a cada relance de olhar meu, ele ficava tão envergonhado que se encolhia um pouco. As costas se apertavam tudo que podiam, e o tal pacotinho preto crescia mais e mais nas suas mãos, chegando a proporções imensas. Céus. Camisinhas gigantescas.
Olha, aquilo era uma coisa de pesadelo mesmo. Ele devia estar na maior vergonha, para me passar aquela sensação. Foi nessa hora que eu entendi que toda a impressão que eu, com meu tubo de pomada nas mãos, tive dele, ele também teve de mim. Sim, éramos semelhantes, insuportavelmente semelhantes dentro daquela farmácia. Tão parecidos que ele, com aquele pacote ardente, sexual e indecente nas mãos, se encolhia de culpa e de vergonha da mulher-mãe com a simplória e banal pomada de queimadura. Seria impossível, claro, que eu precisasse daquela pomada de queimadura por algum tipo de perversão sexual ou coisa do tipo. Assim, estava claro que estávamos em horas e momentos diferentes. Pelas nossas regras, eu parecia correta e ele, completamente inadequado. Ele tinha uma cara de quem estava morrendo de vontade de engolir aquela camisinha e pegar uma inócua e santa cartela de novalgina na prateleira. Tinha uma cara de quem estava se sentindo fora dos padrões, fora dos princípios éticos do mundo dos pais casados no sábado de noite.
A santa e o pecador. A freira e o tarado. Sei lá, alguma coisa do tipo.
Tudo pode ter se passado em menos de um minuto, mas o tempo contido naquela compreensão ia muito além dos muitos anos dos casamentos, o meu e o dele. Éramos ali, aparentemente, apenas um homem e uma mulher do mundo, um homem e uma mulher que um dia poderiam até ter se encontrado e casado, um homem e uma mulher que poderiam ter namorado e feito amor, um homem e uma mulher que poderiam ser atraídos pela natureza de cada um, apenas um homem e uma mulher próximos, colados e juntos numa fila. Mas nunca um homem e uma mulher puderam estar tão parecidos e tão distantes um do outro.
Eu gostaria muito de poder falar isso para ele, naquele momento, e mostrar o que me impressionava naquela situação. Que aquele homem ali na frente precisasse de camisinhas no meio da noite de sábado era o de menos. Quanto a isso, sorte dele. O problema não era ele e suas camisinhas, e nem eu e a minha pomada.
O problema era o acaso, a distância entre nós dois e a transparência poética desta diferença. E, céus... O quanto eu teria que mudar minha vida para que eu pudesse ter uma necessidade urgente de comprar camisinhas numa noite de sábado?
O rapaz do caixa apareceu. Ele pagou, e saiu. Eu paguei, saí atrás.
Saí dali com minha pomada e com minha vida toda. A solidão do meu sábado ficou toda com o homem da camisinha. Saí isolada, mas encontrada. Sai sem ser mais mãe, sem ser mais mulher, sem ser mais humana do que estava antes, mas sai rindo muito. Saí, como quem viveu a navegando à deriva por muito tempo, e uma hora, num sábado à noite, toma conhecimento de onde está e leva o maior susto.
Bem, cheguei em casa com a pomada. A Nani dormia, tranqüila, no sofá. Enquanto passava a pomada, vi que a mão dela estava vermelha, mas que não tinha bolhas. Não era tão grave, pensei.
Ah. Nada nesse mundo é tão grave. Ainda bem.
*

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