terça-feira, 31 de agosto de 2004

Uma mãe, uma manhã

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Eu estava somente triste e mais nada, e já totalmente conformada com a tristeza me deixei ficar triste por mais meia hora, só mais meia horinha. Foi o que eu fiz. A vida da gente tem um monte de regras que a gente mesmo coloca.
Voltei a trabalhar e fazer as ligações atrasadas. Coloquei uma música para espantar o silêncio. No começo minha voz saia fraca, mas aos poucos foi engrossando e chegou até a rir um pouco.
Um dos telefonemas era para uma cliente minha, grávida e mocinha. Atendeu uma empregada, dizendo que ela tinha saído.
- Fala para ela me ligar depois, está bem?
- Olha senhora. Ela foi para a maternidade.
Eu fiquei fazendo um aaaaaaaa comprido, para entender. É, é isso. Acontecia aquilo exatamente naquele momento. Senti deu um arrepio, um enorme e volumoso arrepio, e não precisei fazer esforço algum para mandar meu rosto se iluminar e começar a sorrir naturalemente no meio do aaa.
E eu passei a sorrir.
Eu sei o que é isso, sei o que é chegar perto deste irradiar da vida, deste nascer a cada instante. Ah, essa mania de viver em carne viva nos reserva muitas surpresas. No final somos todas mães, todas iguais, e temos essa hora do nascer dentro de nós. Essa hora que a gente quase esquece no acorda-dorme do dia-a-dia, esta alucinação, esse desejar cuidar, esse início de futuro para sempre que é descer este filho do nosso pensamento ao mundo, colocá-lo em pé, segurá-lo com as nossas mãos, esse nascer a cada olhar.
Somos todas mães eternamente, mal conheço esta mocinha, mas com uma pequena amostra, um pequenino toque, uma reladinha do meu tempo com o tempo dela, ela levou embora meu momento triste. Com a aproximação da possibilidade da vida, levou também todo o meu mau humor, toda melancolia, toda esta estupidez engasgada de voz grossa nos meus telefonemas eficientes.
Somos tão desconhecidas, eu e ela, como sou desconhecida da mulher que habita dentro deste meu corpo. Essa mulher brava, bem humorada, triste, apaixonada, briguenta e dispersa. Ah, um dia, antes que seja tarde demais, vou entender algumas coisas, vou achar o tesouro que essa mulher aqui dentro já achou e eu não percebi, essa eu, essa todas nós.
Estamos todas dentro de todas, estamos todas grávidas e eternamente parindo. Tudo sai de nós, sai sangue, muito sangue, saem filhos, muitos filhos, sai leite, muito leite. Fomos feitas para dar, dar, cuidar, esvaziar e encher, sofrer um pouco e encher de novo, ainda bem.
Ufa.
Apenas uma manhã.

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